quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A derrota dos Highlanders


Simulação computacional indica que envelhecer pode ser uma vantagem adaptativa
© ANDRÉ MARTINS / PLOS ONE
As imagens representam o mesmo momento de uma simulação. Na da esquerda, os membros do time que envelhece estão pintados de azul e os imortais, de vermelho. Na da direita, os dois grupos foram coloridos de verde, como se fossem uma única equipe. Os pontos em tons mais escuros, destacados pelas setas, indicam os indivíduos mais adaptados ao ambiente, que se concentram entre a população capaz de envelhecer
Nos filmes de cinema sobre o personagem Highlander, um guerreiro escocês que se tornou imortal no início do século XVI, o protagonista Connor MacLeod atravessa as eras combatendo malfeitores e fazendo justiça sem sentir o peso da passagem do tempo. O herói não envelhece nunca, seu corpo simplesmente não degenera. A única forma de morrer é ser decapitado por um inimigo. Diante desse enredo fictício, o senso comum leva a pensar que um exército formado exclusivamente de Highlanders seria praticamente imbatível diante de uma armada equivalente de mortais.

Mas uma série de simulações computacionais feitas por um pesquisador brasileiro sugere que tornar-se senil pode ser uma vantagem evolutiva para uma população se o processo de seleção natural ocorrer num ambiente permeado por mudanças. Nessa situação, o grupo cujos membros podem ficar mais velhos tende a ganhar a luta pela sobrevivência e provocar a extinção do bando dos imortais. A explicação para a vitória da população que envelhece estaria em sua capacidade maior de se moldar a alterações no hábitat e gerar mais rapidamente linhagens adaptadas ao ambiente do que os competidores dotados de uma biologia imune aos efeitos da senescência.

O trabalho, cujos resultados são aparentemente paradoxais ou ao menos contraintuitivos, foi feito pelo físico teórico André Martins, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). “Embora seja prejudicial aos indivíduos e tenha um custo evolutivo, o envelhecimento pode ser um benefício em si”, afirma Martins, que publicou o estudo, feito apenas por ele mesmo, sem colaboradores, em 16 de setembro do ano passado na revista científica PLoS ONE. “Ele permite que as novas linhagens se adaptem mais rapidamente a mudanças nas condições de vida.”

Nas simulações em que os indivíduos dos dois exércitos estavam expostos a alterações ambientais e mutações genéticas, o time dos mortais ganhou 39 de 50 batalhas contra os imortais. Essa supremacia não se manteve, no entanto, quando o cenário virtual em que ocorria a disputa era diametralmente oposto. Num ambiente estático e em que os grupos de indivíduos não sofriam alterações em seu DNA, os Highlanders venceram todas as contendas, em geral após disputas que se estenderam ao longo de 220 gerações. “Foram testadas diferentes intensidades de mutação e de mudança ambienal e também alteramos a idade da morte por senescência”, diz o físico da USP. “A vitória dos que envelheciam foi observada numa grande faixa de variação desses parâmetros, enquanto a dos imortais ocorreu em ambientes com mudança muito lenta ou inexistente.”

Na natureza, as condições em que as distintas populações ou espécies competem costumam mudar de tempos em tempos. Por isso, segundo Martins, os resultados de suas simulações favorecem a interpretação de que ficar mais velho pode ter sido uma vantagem adaptativa naturalmente selecionada pelo processo evolutivo. “Acredito que isso seja verdadeiro, embora contrarie a teoria estabelecida”, comenta o pesquisador americano Joshua Mitteldorf, teórico especializado em evolução e modelos computacionais da Temple University, da Filadélfia. “Nos últimos 50 anos, vários experimentos mostram que envelhecer é uma adaptação enquanto as teorias dizem que não pode ser.”
Genes ligados ao processo de envelhecimento parecem ser bem preservados em muitas espécies de animais. Em 2008, pesquisadores da Universidade de Arkansas aumentaram em 10 vezes o tempo de vida do verme C. elegans, um dos organismos-modelo da biologia, introduzindo uma mutação num único gene. Em vez de morrer após duas semanas, exemplares do nematódeo viveram seis meses, alguns até nove meses. Dietas à base de restrições calóricas também têm se mostrado úteis para aumentar a vida de algumas espécies em estudos laboratoriais. Essas evidências, mais o fato de existirem nos organismos mecanismos de morte celular programada, como a apoptose, costumam ser citadas pelos defensores da ideia de que a capacidade de se tornar senil foi uma característica escolhida pela seleção natural.

As principais teorias evolutivas sobre o envelhecimento das últimas décadas, no entanto, caminham no sentido oposto. Grosso modo, defendem a ideia de que a senilidade é uma espécie de efeito colateral, de custo a ser cobrado a longo prazo, em razão de ganhos obtidos durante a juventude. Por essa linha de raciocínio, os primeiros anos de vida seriam o momento crucial de uma espécie, quando ela está mais apta a se reproduzir e perpetuar seus descendentes. Como poucos indivíduos na natureza atingiriam a idade avançada em razão das pressões do meio, a seleção natural não teria privilegiado traços benéficos para a velhice.
Para continuar lendo esta postagem acesse: Revista FAPESP - Fev/2012

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