Esta é a história de uma traiçoeira travessia de fronteira, uma carga valiosa e a caçada de um contrabandista evasivo, cuja identidade esteve envolta em mistério, e controvérsia, durante décadas.
A rigorosa fronteira é a membrana de difícil penetração que envolve bactérias e só permite a passagem de uma quantidade muito limitada de moléculas. Mas o contrabandista, uma proteína bacteriana, transporta matérias-primas críticas através dessa barreira para ajudar a construir a capa protetora do organismo, sua parede celular. Bloquear a proteína deveria enfraquecer essa parede, o que seria ruim para a bactéria, mas bom para pacientes com infecções bacterianas, porque isso poderia levar a novos antibióticos.
Para interditá-la, porém, cientistas precisam identificar a proteína contrabandista e, até recentemente, tinham sido frustrados em seus esforços para descobrir qual delas, entre tantas moléculas, é a vilã. Ela tem um nome genérico, flipase, mas isso é tudo.
Uma nova pesquisa, divulgada em 11 de julho na publicação científica Science, tenta arrancar a máscara da molécula evasiva e a apelida “MurJ”. O trabalho, liderado por cientistas da The Ohio State University, registra a primeira vez que microbiólogos flagraram a proteína vivendo em bactérias vivas. Sua descoberta, no entanto, desencadeou um acirrado debate, porque outros cientistas chegaram a evidências que apontam para outra proteína.
A membrana celular bacteriana serve como uma barreira flexível que mantém os conteúdos da célula no lugar. Além isso, a parede celular é uma malha rija que impede que membrana estoure devido à enorme pressão interna. A parede é como um envoltório de tela que fortalece e sustenta a membrana, explica Kevin Young, um microbiólogo da University of Arkansas for Medical Sciences. “É como se um balão estivesse encerrado em algum tipo de malha e tentassemos bombear ar nele. O balão não estouraria”, exemplifica. Young, que não participou da pesquisa, considerou os resultados importantes e escreveu sobre o debate de identidade ainda aquecido em um artigo de acompanhamento na mesma edição da Science.
A flipase é importante porque ela ajuda a construir essa parede a partir de uma molécula de açúcar chamada peptidoglicano, que é fabricada no interior da célula. Para chegarem à parede, os peptidoglicanos precisam atravessar a membrana interior, feita de moléculas chamadas lipídios, que os repelem.
Então a flipase contrabandeia peptidoglicanos para fora sem dar à membrana uma chance de repeli-los. Como? Imagine justapor suas mãos de modo que apenas as pontas de seus dedos se toquem, explica Natividad Ruiz, uma microbióloga da Ohio State University e integrante da equipe de pesquisa do novo estudo. Agora inverta a posição para que, em vez de se tocarem nas pontas dos dedos, suas mãos se conectem na base das palmas. Ao enfiar um objeto entre suas mãos e mudar a abertura, você poderia movê-lo da palma até a ponta dos dedos sem jamais expô-lo a nada, como uma membrana repulsiva, à sua esquerda ou sua direita.
A equipe de Ruiz constatou que as MurJ faziam algo muito parecido com isso em bactérias Escherichia coli. Os cientistas inibiram a proteína e descobriram que, quando estava alterada, peptidoglicanos não atravessam a membrana. Esse resultado, juntamente com um modelo computadorizado da estrutura da MurJ, sugere a Ruiz que ela é a flipase. “Se você olhar para todas as evidências anteriores... terá de concluir que a MurJ é a proteína por excelência que realiza essa função”, enfatiza ela.
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