quinta-feira, 14 de junho de 2012

Outra saída


Combinação de radioterapia com quimioterapia evita cirurgia radical em parte dos casos de câncer de reto.


Dois brasileiros assinam este mês o principal artigo da revista mais influente do mundo na área de oncologia: a CA – A Cancer Journal for Clinicians, editada pela Sociedade Americana do Câncer e referência em terapia oncológica para cirurgiões e clínicos. No texto, escrito a convite dos editores do periódico, os cirurgiões Angelita Habr-Gama e Rodrigo Oliva Perez analisam quase 200 trabalhos recentes sobre a terapia de tumores de reto e concluem: não é mais possível pensar em uma estratégia única para tratar todos os casos. O avanço dos exames de imagem, que facilitam acompanhar a evolução do tumor, e os resultados promissores do uso combinado de rádio com quimioterapia permitem imaginar para parte dos casos, segundo os autores, tratamentos menos agressivos do que o adotado como padrão em boa parte do mundo: a eliminação definitiva da porção final do intestino, que exige o uso de uma bolsa externa coletora de fezes.
O convite para preparar essa revisão representou para o grupo brasileiro o reconhecimento de que Angelita tinha razão quando há quase duas décadas defendeu uma ideia ousada. Com base em sua experiência clínica, ela propôs que, em casos selecionados com muito rigor, o câncer de reto fosse tratado inicialmente com rádio e quimioterapia e que sua evolução fosse acompanhada de perto, em vez de encaminhado diretamente para a cirurgia radical. Desde 1991 o grupo coordenado por Angelita já tratou aproximadamente 700 pacientes com câncer de reto, atendidos no Instituto Angelita & Joaquim Gama, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e no Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Em pouco mais de um quarto das vezes (precisamente 28%), a terapia com medicamentos e radiação levou à regressão total do tumor.
A combinação de rádio com quimioterapia costuma ser a primeira alternativa para combater vários tipos de câncer. Mas sempre foi vista com reserva no caso dos tumores de reto, que surgem no trecho final do intestino, já próximo ao ânus, e a cada ano atingem cerca de 10 mil brasileiros. O principal argumento dos cirurgiões em favor do procedimento que elimina o reto e os tecidos ao redor era a dificuldade de saber com segurança se o tumor que havia sido eliminado das paredes do intestino persistia nos tecidos adjacentes. “Havia o temor de que estivéssemos enterrando o tumor”, conta Perez, que desde 1995 integra a equipe de Angelita.
Na visão de Angelita valia a pena correr certo risco a fim de evitar a amputação do reto e tentar melhorar a qualidade de vida do paciente. “Tive a felicidade de ser treinada em um grupo de cirurgiões que sempre fez o possível para preservar os órgãos”, conta a cirurgiã, a primeira mulher a fazer residência em cirurgia geral no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1958. De início, nem a equipe brasileira imaginava que as sessões de rádio e quimioterapia fossem suficientes para eliminar o câncer por completo, o que começou a ficar evidente quando passaram a observar que em parte dos casos não havia mais vestígios de células tumorais.
“Senti remorso das vezes em que extraímos o reto e não encontramos mais sinal do tumor”, conta Angelita. Na época havia na Faculdade de Medicina da USP um intercâmbio com pesquisadores de Pittsburgh, que sugeriram que o grupo brasileiro iniciasse um estudo comparativo das duas estratégias feito de modo randomizado, em que os pacientes são selecionados por sorteio para integrar um grupo ou outro. “Fui contra e isso nos prejudicou do ponto de vista científico”, conta Angelita. “Não aceitei fazer amputação de reto e colostomia [instalação da bolsa coletora de fezes] definitiva nos casos em que pudesse ser desnecessário.”
Não foi fácil convencer os estrangeiros de que poderia haver alternativa à cirurgia radical. Quando apresentou seus primeiros resultados em 1997, em um congresso internacional de cirurgia de colo e reto na Filadélfia, nos Estados Unidos, Angelita ouviu do coordenador da mesa: “Câncer de reto é coisa séria. Esse trabalho não merece ser discutido”. Até então, a associação de quimioterapia e radioterapia só era adotada após a extração do tumor para diminuir o risco de ressurgimento, que ocorria em até 40% dos casos depois da operação. Mas os resultados não eram satisfatórios. “É diferente tratar um tecido íntegro e bem oxigenado daquele que passou pelo processo de cicatrização e fibrose depois da cirurgia”, explica Perez.
O resultado melhorou. A estratégia foi eficiente em 65% dos casos. Segundo artigo publicado em 2009 na revista Diseases of the Colon and Rectum, eliminou o tumor de 19 dos 28 pacientes que concluíram o tratamento – essas pessoas continuavam livres do câncer um ano mais tarde.
Apesar do avanço, a adoção ampla dessa estratégia de tratamento ainda não é consensual. O médico Rob Glynne-Jones, do Centro de Tratamento do Câncer Mount Vernon, na Inglaterra, acredita que sejam necessárias mais evidências de que o uso de radiação e quimioterapia antes da cirurgia para tratar o câncer de reto seja de fato efetivo. Em estudo publicado em 2008 na revista Diseases of the Colon and Rectum, ele e outros pesquisadores avaliaram cerca de 240 testes clínicos de fase 1, 2 e 3 feitos em diferentes países e concluíram que as informações disponíveis ainda não permitiam apoiar essa estratégia para todos os casos. “Em nossa visão, [as evidências] ainda não são robustas o suficiente para colocar em risco o bem-estar de um paciente jovem, embora possa se justificar para tratar tumores em estágios iniciais de pacientes mais idosos, com comorbidades [outras enfermidades]”, escreveram Glynne-Jones e seus colaboradores.





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